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26 de janeiro de 2018

PROFESSOR DE FELICIDADE





Vou falar na primeira pessoa, porque a mentira nunca vem em primeiro lugar em qualquer narrativa. Ela vem, muitas vezes dissimulada, lá no fim da história. O que vou narrar são fragmentos de uma vida dedicada ao ensino. Atividades dentro de salas de aula, há muitos anos... Desde sempre! Lembro-me muito bem. Há mais de 60 anos eu inovava em sala de aula, tentando dar aulas de felicidade. Minhas inovações pedagógicas surgiram muito antes da Lei 5697, de 1972 e, por essa época já havia abolido as notas, na escala decimal, substituindo-as por conceitos. Quem foi meu aluno, nesse tempo, pode tudo isso testemunhar. Eram conceitos motivadores, que se encaixavam na faixa etária das primeiras séries do Curso Ginasial. Ficaram famosos, entre a gurizada, o Porquinho Rindo; o Porquinho Sério; o Porquinho Triste e o Porquinho Desesperado. Não havia correspondência entre estes termos linguísticos e os números. Era só isso, mesmo. Os alunos gostavam da minha avaliação, mesmo os que tiravam Porquinho Desesperado, evidentemente um conceito nada interessante. Eles interpretavam o que aquilo representava, pois comparavam esses conceitos com seu desempenho nas provas. Havia sim, embutido nos conceitos, um valor, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. E todos entendiam. Muitos exibiam o conceito obtido numa avaliação como um troféu gostoso, lúdico, conquistado por sua própria performance. Cada conceito tinha sua imagem característica, uma caricatura gráfica do que, denotativamente, representavam. Não se destruía, nas correções das provas, a participação do aluno, em suas respostas, muitas vezes criativa, quando respondiam às questões propostas. Não corrigíamos nada com palavras incompreensíveis; nada era censurado; não rabiscávamos a prova de ninguém. Os equívocos e os “erros” eram transcritos na margem, discretamente. Nunca valorizávamos o erro. Abolimos, também, o uso do terno e gravata como uniforme do professor em sala de aula, substituindo-o pelo jaleco branco. Fiquei até parecido com médico! Foi uma atitude unilateral, passível de repreensão, eu sei, mas o calor de 40° da Cidade Maravilhosa em seus verões de arrepiar, falou mais alto... Abolimos o uso do livro didático em sala de aula e sofremos a fúria das editoras especializadas. Passamos a usar qualquer jornal do dia, sem exigir que ninguém trouxesse um, em especial. Tentávamos fazer com que o aluno adquirisse o hábito de comprar e ler jornal, mesmo nos dias em que não tivessem aula de Língua Portuguesa. Pouca coisa? Creio que não. Eles aprenderam a gostar de ler. Quem não gosta, nos jornais, da seção das Histórias em Quadrinhos, um “entre-lugar” dividido com a literatura e o cinema? Nunca eles haviam tomado a decisão de comprar alguma coisa sadia, para consumo próprio. Foi a primeira vez. Estavam comprando e consumindo informações e notícias, as mais variadas possíveis, a primeira parcela de uma enorme conta de somar, na contabilidade da vida, formando, cada um, o seu incipiente repertório cultural. O próximo passo foi abolir funcionalmente o tradicional quadro-negro, onde se escrevia qualquer bobagem. Só o usávamos para a fixação da aprendizagem. Creio que pela primeira vez se utilizou, em colégio público, nas aulas de Língua Portuguesa, material tão, aparentemente, incompatível com fonemas, sílabas, classes de palavra, conjugações, vozes verbais, figuras de sintaxe, polifonia, metafonia, tudo misturado com muita satisfação e alegria. Passamos também a usar cola plástica, tesoura,   barbante, papel de mimeógrafo, recortando as notícias do dia, interpretando-as e com elas partindo para a leitura e para as análises de todos os tipos programáticos, deixando a sala de aula imunda para o professor seguinte de outra matéria, que me substituiria. Depois de algum tempo e muitas reclamações, as aulas de Língua Portuguesa passaram a ter mais alguns minutos de duração e foram colocadas nos últimos seguimentos do horário do dia, fechando o turno da manhã. Mais uma aceleração pedagógica, inovadora, com reflexos futuros. (Anos depois, dando aula no Colégio de Aplicação, Fernando Rodrigues da Silveira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, verifiquei que as aulas de todas as disciplinas passaram a ter a duração de 100 minutos) Foram atitudes pedagógicas tomadas há mais de 60 anos, em escolas públicas oficiais, sob a responsabilidade da Secretaria de Educação do Estado da Guanabara (hoje, Estado do Rio de Janeiro). Sabem em que colégio tudo isso começou? Nada mais, nada menos que no maior colégio do Rio de Janeiro, na época: o Instituto de Educação, aquele mesmo! Aquele prédio lindíssimo, estilo barroco mexicano, na Rua Mariz e Barros, entre a Praça da Bandeira e a Tijuca, que formava as nossas professorinhas primárias, com diminutivo afetivo, acima de tudo... Pelo que fizemos, quase apanhamos das mães dos pequeninos alunos que não entenderam imediatamente o que estava acontecendo. A Direção queria me expulsar do magistério. Lutei bravamente, numa época difícil de regime político de exceção, mas consegui não ser penalizado e, de certa forma foi reconhecido, saindo até vitoriosa a minha teoria revolucionária de motivação na aprendizagem. Se fomos seguidos? Não importa. O que importa é que fomos reconhecidos, não imediatamente, pois a educação é um processo lento e contínuo. Não existem frutos para serem colhidos imediatamente. A safra custa amadurecer. Depois do Instituto de Educação fomos trabalhar no Colégio Estadual Gomes Freire de Andrade, o famigerado Conde de Bobadilha, aquele que matou mais de duzentos mil índios, na região da Foz do Iguaçu, Paraná. Minha primeira providência no novo colégio foi pedir através de ofício à Secretaria de Educação, a mudança do nome daquele estabelecimento de ensino médio. Queriam me expulsar outra vez. Lá também inovamos. Criamos a primeira radioescola do Brasil, em colégio público de Nível Médio, graças à compreensão de seu diretor, um professor fabuloso, um sábio, Jairo Dias de Carvalho, meu dileto amigo, que não está mais entre nós. O empreendimento foi reconhecido pelo Secretário de Estado de Educação, na época, Celso Octávio do Prado Kelly, pai do João Roberto Kelly, o músico carnavalesco de marchinhas irreverentes, estão lembrados? De lá saí para o Colégio Estadual Barão do Rio Branco e introduzimos a semente dos festivais de música e poemas escolares, numa mistureba cultural de shows e poesia.  Além disso, construímos, com recursos próprios, uma sala especial de Latim. Isso mesmo, Latim. Parecia uma sala de museu.  Mas tudo em educação, se não tiver conscientização e prática contínua, se esvai como água entre os dedos e a sede do saber não se satisfaz, deixando morrer à mingua o desejo de se crescer intelectualmente... Lutei, lutei sempre. Coloquei em livretos essas experiências todas, publicadas pelo editor, Lúcio de Abreu, da Editora Gernasa, um arauto da boa e inovadora educação, um grande amigo, que também já se foi e a quem muito devo, por acreditar nas  "maluquices" daquele jovem e  inquieto professor. Nunca acreditei que somente o cuspe e giz pudessem servir para muita coisa dentro de uma sala de aula. Pois é, existe ainda no Brasil uma grande defasagem entre o que o aluno espera da escola e aquilo que ela oferece a ele. Desenvolvi esse tema também em um livreto da Editora Gernasa, do meu bom amigo Lúcio... Se estes fragmentos memoriais vão servir para alguma coisa, também não sei dizer. Sei que enquanto me lembrar do que fiz, por amor à cauda que abracei, profissionalmente, e que serviu para implementar a cultura e o saber, ajudando o próximo, vou registrando em textos memorialistas, antes que as nuvens negras da tempestade cerebral descarreguem seus raios fúlgidos, mas trágicos, em minha cansada memória e apague tudo. Numa época em que a figura do professor está tão desprestigiada, sirva essa voz tosca desse mestre-escola para registrar que ensinar é ainda a mais nobre de todas as profissões. Assim, entendo e sempre entendi que o professor tem de ser mestre do absurdo, porque só os grandes impactos constroem, enquanto as pequeninas coisas, sempre repetidas, decoradas, empurradas com a barriga, não funcionam, pois não têm graça nenhuma, corroem, enjoam e estragam a nossa vida, a vida de todos nós, a vida do homem comum, a vida de nossos alunos. Todos nós precisamos - o aluno em particular -  de felicidade para viver e o professor tem, por obrigação primeira, abastecer essa demanda. O professor, antes de tudo deve ser professor de felicidade. 

ATÉ A PRÓXIMA
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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.