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5 de setembro de 2017

Artesanato vocabular no “Cancioneiro do Natal” de Stella Leonardos




Há 65 anos publiquei no “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro, no Caderno de Cultura, um artigo intitulado Artesanato vocabular no “Cancioneiro do Natal”. Cancioneiro do Natal é um livro de poemas de Stella Leonardos, cuja Primeira Edição, saiu, no Rio de Janeiro, editado pela Livraria São José, em 1964. Recebi-o da autora, autografado. São comentários críticos, formulados, a partir de uma crítica intrínseca, ainda não muito cultivada na época, mas que eu seguia rigidamente, orientado que fui por excelentes mestres, atentos à modernidade que envolve qualquer ciência e que não foi diferente com a Crítica Literária. Muito aprendi com estes professores com quem, mesmo depois de formado, mantive relacionamento de profunda e fraterna amizade. A eles, minha eterna saudade, pois me ensinaram que o texto literário pode ser esmiuçado – e deve – com toda a emoção da exegese, mas também com cientificidade, a qual deverá incidir nas diversas análises que levarão ao leitor explicações seguras sobre o contínuo transformar e o constante fazer literário. A meus mestres amigos, que hoje são referência para os estudos da Crítica Literária, Textual e Filológica, minha saudação e reverência: Tasso da Silveira; Leodegário A. de Azevedo Filho, Afrânio Coutinho, Joaquim Ribeiro, Eduardo Portella, Jesus Bello Galvão, Sílvio Elia, Jairo Dias de Carvalho.

Passados mais de meio século, republico este artigo, procurando homenagear a grande poetisa, Stella Leonardos que, com seus 94 anos de arte poética e com sua extensa e significativa obra literária, já está eternizada na história da Literatura Brasileira, como pertencente à Terceira Geração do Modernismo. É claro que se fosse reescrevê-lo, o faria com outra visão teórica, mas atentando para os significativos empregos de um vocabulário inovador para a sua época e rico em significados subjacentes. São inúmeros os seus livros premiados e, entre eles, Poesia em 3 Tempos (1957), Cancioneiro do Natal (1964), Geolírica (1966), Cantabile (1967), Amanhecência (1974), Romanceiro da Abolição (1986) e tantos outros. 

Segue o texto cinquentão:

“Cancioneiro do Natal” é um dos mais recentes livros de poesia de Stella Leonados, lançado pela Livraria São José, em 1964. Poesia da mais alta sensibilidade estética, impregnada de lirismo impressionista (“E a Estrela ia roçar nosso telhado”), num ritmo que se distribui vivo e sonoro nas duas partes da obra. Em Natal no Brasil o metro é curto, redondilhas, principalmente, envolvendo-nos o tema natalino, inspirado em nosso folclore. Contudo, é a arte de criar novos vocábulos que mais destaque dá à forma, manejando a autora, com rigorosa precisão linguística, o processo da composição e da derivação. Vejamos: “– o pedaço mais arco-íris”, p.11. O semantema nome arco-íris, com função adjetiva, visualiza todas as suas cores, transmitindo-nos esta impressão e também impondo a sua presença por ser, ao mesmo tempo, semantema nome e com função adjetiva. Assim, é a derivação imprópria realizada pela altura. Adjetivações de substantivos: “e nos teus olhos garotos” (p. 11). E esta adjetivação: “berços de noite inocência” (p. 12); “tão eco de Natais inesquecíveis” (p.15); “E pensar que sonhei de alma garota” (p.17); “Essa graça tão flor de quase incrível” (p.19); “Dia mago, barba luz e alvo manto” (p.20); “Dei-lhe uma viola bruxedo” (p.98); “Dá sorrisos cor simpleza” (p.103). A substantivação do verbo: “e irei de encontro ao rir das mesmas vozes” (p.13). O semantema dinâmico –rir- se torna estático, sem tempo, sem aspecto, sem continuidade, retratando uma só realidade não fugaz. A adjetivação do advérbio: “Este Natal a ti, meu sempre motivo de viver e curtir vida” (p.15). Substantivação do adjetivo: “e as sombras desses longes vão de encontro às sombras de meu ido coração” (p.18). Pela falta de expressividade da função adjetiva de –longe- para retratar a sua realidade, a poetisa o transforma em nome (semantema) com função de “coisa”, de algo que pertence ao mundo dos objetos: (os longes). O emprego do substantivo pelo adjetivo: “suspensa em fio mistério” (p. 26). Mistério é nome em função adjetiva. Substantivação do verbo: “do meu mirar” (p.42). É o dinâmico pelo estático. A valorização recai no fato e não na ação de mirar. Ainda: “dos mais elmos floresceres” (p.67). Substantivação do advérbio: “Viola e ganzá num sim” (p. 104). Toda esta criação está perfeitamente dentro das normas linguísticas da língua e do mesmo modo se apresentam os vocábulos  criados com apoio na composição. Expressões sintagmáticas são convertidas em novos e expressivos vocábulos, estruturalmente formados, foneticamente constituídos: “às minhas mãos fragi-leves” (p.11); “manhã de sobre-rosados” (p.12); “e soltam riso-pássaros” (p.12); “menina acordarei de olhos-saudade” (p. 12); “E teus olhos-céus, imperceptíveis” (p.14); “alegroandante o meu sonhar ingênuo” (p.16); “um dezembro sofrido, verdiescuros” (p. 18); “e o mago o azul-rei da noite santa”(p.20); “E então nos compôs-céus os nuvenbrancos” (p.20); “com toques-milagres” (p.31); “marujo-esperança” (p.34); “de mar-esperanças” (p.35); “A cabecinha-de-vento” (p.43); “olha de olhos boas-vindas” (p.54); “chegam três vozes desnoras” (p.63); “descerram portas-auroras” (p. 63); “mil-e-uma-noites sonhadas” (p.73); “encenar cristãos-e-mouros” (p.73); “Barro-poesia nas horas” (p.76); “e as luzes de estrelas-guias” (p.77); “rumo às ruas-corações” (p.78); “alegrovivente” (p.78); Três Marias moças-flores” (p.82); “outros Meninos-Messias” (p.85); “boi-bumbada animação” (p.89); “boibumbante oi oi oi oi !” (p. 89); “Moça, é bicho engole-gente” (90); “de cabra e barba-de-bode” (p.90); “pele-de-Ceará nos olhos” (p.92); “indisfarsável-possante” (p.96); “rosa-chá pra xás da Pérsia” (p.97); “sonhos sem-fim indeléveis” (p.97); “alma das noites-segredo” (p.98); “tremeluzentes, e vagos” (p.101); “levam levas vozes-lágrimas” (p. 107), para citar, apenas, as mais expressivas.
Recorre ao processo da derivação com muito cuidado, utilizando todos os recursos da prefixação e da sufixação, sempre obedecendo às normas linguísticas: “de algodoada mansuetude” (p.27); “de reisado – então não sei?” (p.32); “jornadeava. Então, aos poucos” (p.37); “Jesusinho nos proteja!” (p.85); “Adeus, ex-alegres bichos, / ex-chicote de Mateus” (p.93).

As sugestivas onomatopeias aliteradas enriquecem este artesanato vocabular: “tiquibum quitibum bum!” (p.72) e “em que viera, lapo lapo” (p. 100).

Na quadra : “E segue empós do Vaqueiro. / Atrás do séquito simples,  / seguidores simples mente / seguidos de álacre ritmo” (p.104), encontramos no terceiro verso (“seguidores simples mente”) a bipartição formal do advércio – simplesmente – que nos apresenta duas palavras: - simples – e – mente - , dando ritmo visual ao verso. “Simples” é nome que se refere a – seguidores - , porém, com função adverbial.

Por conseguinte, “Cancioneiro do Natal”, é poesia da mais lírica inspiração e, sobretudo, manancial de rico e inesgotável campo para as pesquisas da microanálise estilística, obra com que a fina sensibilidade de Stella Leonados nos brinda e deleita.

LCSF, Rio, 2 de maio de 1965, Ano do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro.

 ATÉ A PRÓXIMA














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Balneário Camboriú, Sul/Santa Catarina, Brazil
Sou professor adjunto aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sou formado em Letras Clássicas pela UERJ. Pertenço à Academia Brasileira de Filologia (ABRAFIL), Cadeira Nº 28.