Ainda não havia visitado o Teatro Carlos Gomes da cidade de
Blumenau. Há alguns dias vinha recebendo informações cifradas de meu amigo
fantasma, que, diga-se de passagem, não se comunicava comigo uma eternidade.
Exageros etéreos à parte, caracterizado por esse ridículo hipérbato, resquício
de minha profissão, já deixada para trás, não pude me esquivar de atender ao
meu branco, enfumaçado e dileto companheiro, depois que ele deixou um convite,
misteriosamente enviado e que ficou estampado numa aba inferior do écran
azulado de meu computador. Para quem já se esqueceu de quem se trata, ou para
os que nunca leram minhas crônicas catarinenses, recheadas de inúmeros
absurdos, esse fantasma amigo é um nobre português de priscas eras, que tem
laços de parentesco com importantes famílias germânicas e italianas do início
da Idade Média. Aqui no sul do Brasil, onde agora resido, meu amigo de outras
dimensões já comigo viajou e me esclareceu inúmeras situações históricas,
levando-me a sítios espetaculares, onde seus parentes edificaram, com muito
trabalho e denodo à terra, núcleos colonizadores que hoje orgulham todos os
brasileiros, descendentes ou não desses povos europeus. Conheci-o no Castelo da
Penha, nos arredores de Lisboa. Veio comigo para o Brasil dentro de minha
bagagem de mão, num inesquecível voo da TAP, que chegou com algum atraso ao
aeroporto internacional Antônio Carlos Jobim, no Rio de Janeiro, em 1985, pois
se materializou no banheiro e quase instalou o caos total entre comissários, aeromoças,
pilotos e copilotos, além de alguns estupefactos passageiros.
Extraí do computador o convite para a
apresentação do show indicado, que se realizaria numa quarta-feira, às 20
horas, no teatro municipal destas terras de raízes alemãs e me preparei para o
espetáculo. Ele me perguntou se conhecia as estórias sobre o Teatro Carlos
Gomes que corriam à boca folclórica, desde os longínquos tempos da Segunda
Guerra Mundial. Desconhecia. Mas como
você é desinformado, replicou cavernosamente – creio que de propósito – muito mais para
chamar atenção ao que iria me contar em seguida, do que para me repreender pela
ignorância declarada. E continuou. O teatro
é uma réplica do quepe militar do Fuehrer, Adolf Hitler, e tem inúmeras
passagens secretas em seu interior, ligando as coxias ao rio Açu, o belo e
bestial Itajaí! Já se chamou Sociedade Teatral Frohsinn e só depois da última grande
guerra mundial é que passou a ter esse nome de Carlos Gomes. Fiz cara de
incrédulo. Sei lá se há cara que registre isso, mas, a princípio, não
acreditei. Então, eu querendo bancar o sabido, perguntei se ele conhecera ou se
fora parente ou contraparente da tal família Frohsinn. Respondeu-me com um
sorriso esbranquiçado, tendendo para um amarelo debochado e desbotado que Frohsinn
não é e nunca fora nome de nenhuma
família. Frohsinn é um substantivo comum, masculino e significa alegria,
jovialidade. Portanto, não é um nome de família, como alguém poderia pensar.
Em seguida, jogando fumaça fora, para todos os lados com os braços inquietos,
disse que se lembrava de uns parentes, por parte de pai, que trabalharam na Sociedade
Colonizadora Hanseática, criada em Hamburgo em 1897. Tal Sociedade iria substituir a organização responsável pela
fundação de Joinville. Seus descendentes estariam nessa noite de quarta-feira, para
assistirem, também, ao interessante espetáculo musical. Eram descendentes de
alemães, portugueses e também muitos italianos. Eu passei de apreensivo a
contente, pois senti firmeza em meu amigo branquinho. Acreditava, mesmo, em tudo que ele dizia, pois
os fantasmas estão acima do bem e do mal, como também, por serem criaturas atemporais,
vivem numa única dimensão, sem presente, passado ou futuro. Não se sujeitam ao
nosso sistema de vida, no qual os acontecimentos, como a nossa fala também,
estão sujeitos e colocados na linha do tempo, surgindo uma coisa após outra, na
sucessão inexorável do bater dos segundos, milagre que não pode ser repetido
neste mundo dos mortais...
Fui ao Teatro Carlos Gomes assistir
ao “Sonho de um Cantador” com Deco
Dalponte e sua banda. Entrei. Passei a transitar entre o grande público, ainda
nos corredores de acesso ao palco e percebi, pelo sotaque do pessoal, que meu amigo
fantasma estava certo. Havia muitos
descendentes de alemães e italianos, ali naquela festa que movimentava as
atividades culturais de Blumenau. Sons guturais dos descendentes germânicos se
misturavam com a doce sonoridade de carcamanos genoveses e de várias outras
regiões da grande península do Mediterrâneo. Realmente o show de Deco e sua
Banda, Sonho de Cantador, seria
aplaudido por todos os seus amigos presentes, de todas as origens, híbridos
ítalos-germânicos, portugueses, gaúchos, catarinenses desta e de outras
cidades. Deco, cantando, contou sua vida, desde Concórdia, onde nasceu,
passando por Marcelino Ramos, município gaúcho onde iniciara sua vida de
cantador, até chegar aqui, nesta cidade que o acolheu definitivamente. Não
deixou de fazer referências às suas viagens à Europa, quando visitou a Itália
de seus antepassados maternos. A Alemanha e a França também ouviram e
aplaudiram suas românticas cantigas e seus roques pós-modernos. A presença de
Leco, firme e resoluta no palco, contagiou a plateia, principalmente pela
animação das vibrantes tarantelas, cantadas por todos os presentes, que
aplaudiam os bonitos números apresentados. Sua família, envolvida no
espetáculo, serviu para humanizar ainda mais a bonita e bem organizada festa
musical, que levou à sociedade blumenauense muita alegria e uma excelente
música. Estava tudo perfeito. Pessoas de seu convívio e de sua história de vida
foram homenageadas, comovendo todos nós. Seus filhos encantadores extasiaram o
público. Tudo estava perfeito, da iluminação ao som ambiente. Das seleções
musicais, quase todas de sua autoria, às apresentações dos “miúdos”, que encantaram meu amigo
fantasma, nessa noite espetacular, onde conheci mais um monumento dessa
encantadora cidade de Blumenau, predestinada ao sucesso pelo vigor de seu povo
e pelo trabalho honesto de seus cidadãos.
ATÉ A PRÓXIMA